No âmbito do último dia da II Sessão Ordinária do mês de Julho, e no culminar dos debates parlamentares sobre o Estado da Nação, a deputada Carla Lima, eleita pelo PAICV, lançou um debate em torno da liberdade de imprensa e do papel da comunicação social em Cabo Verde, denunciando o que qualificou como um cenário de intimidação, silenciamento e desinstitucionalização dos órgãos públicos de informação.
Segundo a deputada Carla Lima, o país vive hoje um clima de hostilidade contra o jornalismo livre, onde “os jornalistas são processados por simplesmente publicarem factos”, sobretudo quando esses factos configuram “verdades incómodas” para os detentores do poder. A parlamentar afirmou, ainda, que o ‘fact-checking’ é hoje interpretado como afronta, provocação e ameaça, num ambiente em que, segundo as suas palavras, os alicerces da democracia cabo-verdiana estão a ser gravemente abalados.
Criticando a ausência de transparência e o alegado controlo político sobre a comunicação social pública, Carla Lima falou em “sucateamento” da RTC, a inoperância do Conselho Independente – que, segundo ela, “não reúne há mais de um ano e nunca apresentou um único relatório” –, e a não implementação do Conselho de Opinião e da figura do Provedor dos Utentes. Deixou, a propósito, uma pergunta retórica: “O que está a acontecer na RTC é democracia ou prolongamento da assessoria do Governo?”.
O Primeiro-Ministro, Ulisses Correia e Silva, não tardou em reagir às acusações, desafiando a deputada e o seu partido a clarificarem “quem, em nome de quem, e com que propósito, tem ameaçado jornalistas”. Negando qualquer validação de ataques à imprensa por parte do Governo, o chefe do Executivo foi enfático ao afirmar que “o Governo não aceita, nem encobre ameaças a jornalistas”, ao mesmo tempo que cobrou uma posição clara do PAICV sobre declarações falsas proferidas nas redes sociais – como a de um militante que o acusara de ser “sócio maioritário da Cabo Verde Interilhas”.
Ulisses Correia e Silva evocou ainda um episódio em que jornalistas, contrariando regras previamente estabelecidas, tentaram interpelá-lo à força após uma declaração pública sobre o novo hospital. “Todos sabiam que não haveria perguntas. Ainda assim, fui quase atropelado por microfones”, desabafou o Primeiro-Ministro, numa tentativa de mostrar que o Governo não evita o escrutínio, mas que também é necessário respeito mútuo entre todos os operadores do espaço público.
Por seu turno, Isa Costa, deputada do MpD, recorreu à biografia da deputada Carla Lima para lançar questões sobre a sua isenção ou não enquanto antiga jornalista. Lembrou que a parlamentar, que foi repórter da RTC e que cobria os assuntos relacionados com a Assembleia Nacional, viria a ocupar o sexto lugar nas listas do PAICV, sugerindo um conflito ético entre as funções jornalísticas e a militância política. “Ninguém está acima da Constituição da República. Todos os jornalistas devem cumprir o Código Deontológico”, afirmou a parlamentar Isa Costa, defendendo que jornalistas parciais devem poder ser questionados.
Ainda no campo da maioria parlamentar, o deputado Abraão Vicente, que já foi ministro com tutela da comunicação social, acusou diretamente Carla Lima de ter feito carreira política com base em “ataques políticos” enquanto jornalista e ex-presidente da AJOC (Associação Sindical dos Jornalistas de Cabo Verde). Acusou-a, ainda, de ter “boicotado” a reforma da RTC enquanto liderava aquela organização e questionou a sua legitimidade para liderar um debate sobre liberdade de imprensa, lançando-lhe críticas acentuadas: “Se estás aqui no Parlamento hoje é por causa do ataque que fizeste ao Abraão Vicente.”
Na réplica, Carla Lima diz que não tem de se demarcar das alegadas milícias digitais, alegando desconhecer do que se fala. Respondeu, acusando Abraão Vicente de ser um “pintor sem obra, escritor sem livro e governante sem resultados”. Defendeu que, se a reforma da RTC fracassou por sua exclusiva oposição enquanto presidente de um sindicato, isso revelaria a total “incompetência” do Ministro da tutelava a comunicação social. “Se não estava preparado para ser ministro, o problema é seu”, atirou.
Este debate revelou as profundas divergências institucionais, éticas e ideológicas em torno da liberdade de imprensa em Cabo Verde. Entre as acusações de instrumentalização política dos ‘media’, ausência de regulação efetiva dos órgãos públicos e a polarização do espaço digital por milícias informacionais, ergue-se uma democracia ainda em busca de equilíbrio entre liberdade, responsabilidade e pluralismo.